A Doença Celíaca e a “Intolerância ao Glúten”

O que é o Glúten?

A palavra glúten deriva do latim e significa “cola”. O glúten é um conjunto de proteínas de armazenamento denominadas prolaminas e glutaminas.

Encontra-se glúten no trigo, na cevada e no centeio, sendo muito usado na confecção do pão pela sua elasticidade mas, como é enriquecido em prolaminas e glutaminas, é incompletamente digerido pelo tubo digestivo humano, deixando péptidos longos (com 33 aminoácidos) em contacto com o nosso tubo digestivo.

Estas proteínas podem “penetrar” a parede do intestino delgado e, em indivíduos susceptíveis, pode desencadear uma resposta auto-imune responsável em parte pela doença celíaca.

O que é a Doença Celíaca?

A Doença Celíaca é uma doença auto-imune que ocorre em indivíduos geneticamente predispostos que desenvolvem uma resposta imune ao glúten.

É uma doença que afecta primordialmente o intestino delgado, mas as suas manifestações são múltiplas e os doentes podem apresentar sintomas intestinais e extra-intestinais. Esta doença é considerada muitas vezes um modelo para doenças auto-imunes que necessitam de um estímulo ambiental (glúten) para se manifestar.

Tentando simplificar, nas pessoas com doença celíaca, componentes do glúten são capazes de atravessar a camada superficial do intestino (as células epiteliais) e chegam à lâmina própria (“debaixo” destas células) por via trans ou para-celular ocorrendo nesse local um processo químico chamdo deamidação do glúten por uma enzima chamada transglutaminase tecidular. Este processo faz com que uma substância chamada gliadina (um produto do glúten) se torne muito imunogénica e, em indivíduos susceptíveis, desencadeia uma resposta auto-imune que culmina na alteração da camada superficial do intestino delgado, provocando alguns sintomas gastrointestinais e interferindo na absorção de muitos nutrientes.

A Doença Celíaca é uma doença frequente?

A doença celíaca tem vindo a aumentar de incidência e este aumento parece não ser devido a uma maior atenção a este problema.

Cerca de 1% da população mundial está afectada, sendo que no nosso país cerca de 0,7% da população tem Doença Celíaca. Por vezes é uma doença de diagnóstico tardio porque os sintomas podem ser muito inespecificos e a doença não é activamente pesquisada, provocando um inevitável atraso no diagnóstico.

A Doença Celíaca é uma doença apenas diagnosticada na infância?

Classicamente a Doença Celíaca era uma doença da infância, habitualmente diagnosticada antes dos 10 anos de idade.

Este paradigma mudou nas últimas décadas, sendo actualmente uma doença possível de diagnosticar em qualquer idade, sendo já múltiplos casos sido descritos em idade geriátrica.

Não há idade limite para se ter Doença Celíaca pelo que se os sintomas forem sugestivos de Doença Celíaca, esta deve ser sempre investigada.

Quais são os sintomas mais frequentes da Doença Celíaca?

Apesar do que habitualmente se pensa nem toda a gente com doença celíaca tem diarreia, apesar de ser um dos sintomas mais frequentes, afectando cerca de 35% dos doentes.

Contudo, paradoxalmente em cerca de 20% dos doentes o sintoma predominante é a obstipação.

Outros sintomas e sinais frequentes (especialmente na idade adulta) são a dor abdominal, a anemia por défice de ferro, artralgias, fadiga, osteoporose e infertilidade.

Como se pode diagnosticar a Doença Celíaca?

Em primeiro lugar, o mais importante é, em face dos sintomas, pensar que a pessoa pode ter uma doença celíaca.

Temos testes sanguíneos (como o anticorpo anti-transglutaminase IgA) que são muito sensíveis e específicos para o diagnóstico desta doença em pessoas com sintomas sugestivos de Doença Celíaca.

Como a Doença Celíaca é uma doença do intestino delgado (especialmente da parte mais proximal do mesmo) é acessível através duma endoscopia digestiva alta que pode mostrar sinais típicos da doença e, mais do que isso, permite a realização de biopsias para confirmação do diagnóstico e estadiamento da doença.

Em Portugal é prática comum confirmar o diagnóstico através de endoscopia.

A Doença Celíaca é uma doença genética?

A Doença Celíaca é uma doença com uma componente genética indubitável, uma vez que ela só ocorre em pessoas geneticamente susceptíveis.

Virtualmente todas as pessoas com Doença Celíaca têm um dos seguintes haplótipos do HLA: DQ2 ou DQ8. É possível testar as pessoas para pesquisar estes haplótipos e, na ausência dos mesmos, ter Doença Celíaca é quase impossível.

Contudo, estes haplótipos existem em cerca de 40% da população, e nem todas as pessoas apresentam Doença Celíaca. Assim, apesar de ter seguramente uma base genética, a componente ambiental é igualmente muito importante.

Se tiver um familiar com Doença Celíaca devo ser rastreado?

Este assunto ainda é alvo de muita polémica, ainda não se tendo atingido um consenso global sobre se os familiares devem fazer rastreio e quando o devem fazer.

Apesar de naturalmente terem um aumento da probabilidade de virem a desenvolver Doença Celíaca (cerca de 10-14% dos doentes com familiares em 1º grau de Doença Celíaca vão acabar por desenvolver a doença) a verdade é que a maioria nunca vai desenvolver a mesma.

Contudo, o rastreio inicial pode ser efectuado apenas com uma análises sanguínea, pelo que é algo sempre a ser considerado, especialmente se observarmos algum sinal ou sintoma suspeito de Doença Celíaca.

O tratamento da Doença Celíaca é só retirar o glúten da dieta ou há medicamentos para esta doença?

O tratamento mais eficaz (e até à data único) é a retirada completa do glúten da dieta. Todos os doentes com Doença Celíaca devem ser seguidos não só por um Gastrenterologista mas também por um(a) Nutricionista especializado em Doença Celíaca.

A retirada do glúten é eficaz no controlo dos sintomas e na reversão das alterações orgânicas em cerca de 80% dos casos e, na maioria dos casos em que não há melhoria é porque há uma ingestão inadvertida de glúten.

Contudo, a Doença Celíaca é uma doença socialmente incapacitante, cara e a comida sem glúten por vezes não é tão saborosa como a comida com glúten. Vários medicamentos foram tentados para a Doença Celíaca (dois deles atingiram o estádio de ensaios clínicos), mas nunca nenhum medicamento mostrou ser capaz de melhorar significativamente os sintomas da Doença Celíaca e nenhum deles era superior à dieta sem glúten.

Há um aumento da mortalidade e de tumores nas pessoas com estas doença?

Há, efectivamente, um modesto aumento da mortalidade e de alguns tumores nestes doentes (especialmente alguns tipos de linfomas). Contudo, este aumento é marginal, não deve preocupar os doentes com doença celíaca e o que sabemos à data é que se os doentes aderirem a uma dieta sem glúten os valores de mortalidade ou de ter cancro são semelhantes à população geral.

A “intolerância” ao glúten (ou a sensibilidade ao glúten não-celíaca) é uma doença bem estabelecida?

Não, não é,  o que é um enorme problema… Há um cepticismo enorme da comunidade científica relativamente a este assunto uma vez que ainda não se descobriu uma base biológica para as pessoas que, apesar de não terem Doença Celíaca, referem aparecimento de sintomas quando comem glúten.

O termo intolerância ao glúten é, provavelmente, um termo errado, sendo mais correcto sensibilidade ao glúten não celíaca, sendo que provavelmente não é o glúten o culpado mas sim fructanos (hidratos de carbono não digeríveis) que estão presentes no trigo, na cevada e no centeio.

Contudo, há um crescente número de doentes que auto-reportam serem intolerantes ao glúten e que aparentemente melhoram dos sintomas com evicção de glúten da dieta.

Uma das grandes diferentes entre estas duas doenças é que a intolerância ao glúten não provoca as consequências típicas da Doença Celíaca como anemia, infertilidade, perda de peso, perda de peso, dermatite herpetiforme, osteoporose, etc.

É muito frequente?

É, aparentemente, muito mais frequente que a Doença Celíaca em si!

Os últimos estudos indicam que cerca de 10% da população dos povos ocidentais reportam terem intolerância ao glúten e que melhoram com uma dieta sem glúten.

Há mesmo pessoas que mesmo não tendo Doença Celíaca melhoram com uma dieta sem glúten?

Há! Apesar de ser um tema “complicado” para os médicos em geral e para os Gastrenterologistas em particular, há efectivamente um conjunto de doentes que melhora de vários sintomas gastrointestinais com a evicção de glúten.

Mais do que o glúten provavelmente devíamo-nos focar nos FODMAPs (conjunto de hidratos de carbono alimentares que não são digeridos e que podem provocar sintomas como flatulência, distensão abdominal e diarreia) sendo que uma dieta baixa em FODMAPs (que também restringe a ingestão de trigo) parece ser mais eficaz no controlo dos sintomas neste grupo de doentes do que a simples retirada do glúten.

Todas as pessoas deviam fazer uma dieta sem glúten uma vez que este é prejudicial para a saúde?

Isto é completamente falso!

As únicas pessoas que medicamente devem retirar o glúten da sua dieta são as pessoas com Doença Celíaca.

Apesar de haver um grupo de pessoas que poderão ter alguma intolerância ao glúten, o glúten é seguro e muito bem tolerado pela enorme maioria da população, não havendo qualquer motivo científico, médico ou lógico para restringir o glúten a toda a população.

Pode descobrir mais sobre este tema na Secção Multimedia ou através do seguinte link.

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